terça-feira, 17 de novembro de 2009

SE AFOGANDO NAS PRÓPRIAS LÁGRIMAS


Eu já coloquei esse texto aqui antes. E vou colocar muitas vezes mais, porque descobri ao longo dos anos que ele é mágico - lendo várias vezes, a gente descobre nuances que não tinha percebido antes.

E em cada momento da nossa vida, ele nos diz uma coisa relevante. Eu gosto de relê-lo quando as coisas estão confusas, perdendo o foco, ou simplesmente quando o "mundo amanhece irreconhecível". Hoje, me lembrei dele, ao pensar como nos entregamos às lágrimas de modo desnecessário. A vida é curta. E quem sofre em demasia, merece se afogar nelas.

Para mim, é o melhor texto do mundo. Além de ser de uma psicanálise profunda, trata do meu livro favorito. Eu ganhei da minha terapeuta quando fiz 18 anos. E virou assim, meu manual de vida.

Leia. Releia. Guarde.

PARA MARIA DA GRAÇA.

"Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: “Alice no País das Maravilhas”.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?". Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto-de-vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?".

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!". Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. Ê isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas...".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça."


Paulo Mendes Campos

14 comentários:

Eline disse...

Elise, você não tem noção de como eu precisava ler esse texto HOJE!! :/
Na verdade ter lido há algumas semanas teria me ajudado um bocado, mas hoje era realmente necessário!
AMEI!
:]

Tati disse...

Assim com a Eline, tb precisava MUITO desse texto hoje. Lindo, e util! Obrigada! bjs

Nayara disse...

No lab lendo esse texto, ao som de Daughters de John Mayer...sim, a vida é muito, muito mais simples do que parece..até mesmo quando é complicada...não vou me afogar nas lágrimas, mas com elas vou limpar a visão e ver a claridade de mais um dia...

Um bj...e um abraço...apertado. Obrigada.

Bruna Hernandes disse...

Simplesmente sensacional.
Riquíssimo.
Amei, Elise.
Se já seguia seu blog antes, agora virei assídua.

Beijinhos!

Letícia disse...

Ah, Elise, não acredito! Esse é meu texto preferido desde sempre, ou desde que eu li pela primeira ves e tinha pouco mais de 15 anos, achei genial, e sempre leio, assim como tb sempre leio Alice.

Unknown disse...

Hummmmm.
Estou me afogando nas próprias lágrimas.
Vou tratar de mudar o rumo da prosa então.
Mas é tão difiícil amiga!
Beijas

Carola disse...

Nossa Elise, arrebatador!!!
Preciso enviar esse texto à duas amigas muito queridas e relê-lo várias vezes também!

Obrigada por dividí-lo conosco!
Beijasss

Tatiane Garcia disse...

Oi Elise...venho sempre aqui sem comentar...pra dar risada, distrair com seu "bom" humor (rs..negro as vezes...mas bom humor)!
Mas o texto de hoje, belíssimo por sinal, me fez comentar...muito talentoso quem o escreveu...liçoes de vida em cada linha...ah, e me deu vontadinha de ver o filme novo da Alice, que tá por aí no forno!!!
Beijo!!!

Anônimo disse...

Estou achando que esse post foi pra mim!!! E estou toda, toda aqui.

Valeu, Elise!!

Ainda estou um pouco machucada, mas estou bem melhor que ontem e amanha sera ainda melhor, jah posso prever.

Rapadura eh doce mas nao eh mole, nao.

Tata.

AVALON LAND KENNEL disse...

Adorei o texto.
Complexo e simples ao mesmo tempo - como a vida.
E foi lido num momento muito peculiar da minha vida - em que precisava realmente ler algo deste tipo.
beijos

PAULA disse...

Adorei a parte do fuja das pessoas que dizem:"minha vida daria um romance".
boas energias

Elise Machado disse...

Muito feliz de saber que tocou cada uma de vcs. Legal saber que algumas pessoas tb já conheciam.

Bel Rocha disse...

Eu não conhecia mas adorei. Realmente dá pra entender que em cada momento da vida esse texto vai dar diferente significado pra quem ler.
Ah, vivo lendo seu blog, sou sua fã! Adoro seu sarcasmo e acidez, genial! Mas não tinha hábito de comentar, buuut agora virei blogueira e a gente acaba aprendendo. :)

Beijos

Rosângela Grub Costa disse...

O texto veio a calhar nesta fase de "mi vida"..
Thank´s Elise!
Beijo.