Meus heróis :)
Domingo, meio-dia. A gente tomando café da manhã na padaria.
Ele vira pra mim:
- Tou agoniado. Já pensou que a essa hora o pessoal está fazendo um monte de coisa lá em Teresópolis, e a gente não está mais lá pra ajudar? Tou me sentindo um inútil aqui.
Eu sentia a mesma coisa.
***
A história começou na quinta, logo depois da
tragédia na Região Serrana no Rio.
Soubemos tardiamente da morte de um conhecido. Eu não era íntima dele, mas fiquei bem chocada - ele morreu com a mulher, o filhinho de 2 anos e mais um monte de pessoas da família.
Já o B ficou arrasado - eles tinham sido parceiros de pelada.
Poucas horas depois chega um
email dele avisando que estava combinando com um amigo de trabalho de subir a serra, pra ajudar como voluntário.
Eu respondi "
quando vamos?", e ele ficou feliz e disse que sabia que não iria sem mim. E assim começou um grupo de gente querendo enviar doações e ir até lá pra ajudar nos escombros. Esse amigo tinha família lá e através deles ficou sabendo que a
Defesa Civil não estava dando conta dos mortos, feridos e desabrigados. Que havia muita gente sem resgate ainda, e sem comida e água.
Aqui no Rio, outros amigos começaram a reunir doações e conseguiram um caminhão, que eles levaram cheio de coisas em comboio pra lá depois. Outros amigos doaram em supermercados. Outros depositaram dinheiro. Outros doaram sangue. Um monte de gente se mobilizou de todos os lados.
Formou-se uma grande rede de ajuda carioca.
Nosso pequeno grupo saiu na madrugada de sexta para sábado, às 4 da madrugada. Malas dos carros abarrotadas de água e mantimentos.
Eu não vou dizer que não estivesse com medo - rárá, eu estava
MORTA de medo!
Eu não sou kamikaze - estava doida pra ajudar, mas sabia que tínhamos limitações. Ia vendo a previsão do tempo a cada meia hora, e combinamos que a qualquer sinal de perigo, deslizamento ou coisa assim, voltaríamos.
Afinal, não adiantaria nada nos colocarmos em perigo e acabarmos atrapalhando tendo que ser socorridos também, como me lembrou duramente um amigo cético. Recebi tantos avisos preocupados para não ir que fiquei apreensiva - uma pessoa me perguntou "
por quê" a gente tinha que ir.
A gente não "
tinha", mas...
por que não ir? Cada um doava o que podia e queria, nem que fosse uma oração - nós queríamos doar nosso tempo.
A gente sempre sofre com essas tragédias, e assiste horrorizado, doido pra poder estar lá e ajudar - essa foi no nosso "quintal de casa", a pouquíssimas horas daqui, num lugar que adorávamos. Foi difícil resistir.
Nosso grupo era formado por mim, pelo B e pelos amigos
Fábio, Fábio Lima, Gabi, Terta e
Daniel.
A estrada estava inacreditavelmente tranquila e limpa, e chegamos lá muito cedo. Fomos direto pra Defesa Civil, de onde fomos encaminhados: nós, as 3 mulheres, acabamos no ginásio
PEDRÃO, que tanto apareceu nos jornais, e os homens saíram em missões junto com a
CRUZ VERMELHA.
No
PEDRÃO... vocês não fazem ideia!
Eram voluntários, Defesa Civil, Bombeiros, Polícia, gente machucada, velhos abandonados, crianças perdidas, famílias dormindo em colchonetes, pouquíssimos médicos tentando cuidar de todos, pessoas chorando os parentes mortos, outras olhando as listas de localizados...
UMA BABEL!!!
Sim, há muitos desabrigados lá, mas não é nem 1/10 do número total. Lá é o centro de distribuição de mantimentos e outras doações. A arquibancada
INTEIRA do ginásio está tomada de sacos de roupas, sapatos, cobertores...
Nós tínhamos que ser em número 3x maior pra dar conta de tudo. Eu e as meninas assumimos a seção de roupa masculina, e começamos a desensacar tudo, separar por tipo de roupa, tamanho, e atender as solicitações que chegavam.
Subíamos e descíamos freneticamente as arquibancadas (hoje minha panturrilha sedentária dói como se estivesse pegando fogo, rs).
Tínhamos que usar luvas de borracha.
Ficamos nisso horas, sem nem lembrar de sentar um minuto.
Final do dia, todos molhados, exaustos e descabelados (eu, rs)
E no meio disso tudo, atendíamos ao público - as pessoas chegavam com papéis entregues pelos assistentes sociais pedindo roupas.
Eu e as meninas saímos um pouco do padrão, pois quando chegava alguém pedindo "
uma camisa e uma calça", a praxe era pegar a primeira coisa da pilha e entregar.
Nós não.
Nós começamos a escolher as roupas, e tentávamos sempre personalizar a coisa. A Terta pegava sempre umas 2 opções de cada peça pra pessoa escolher. A Gabi perguntava o tamanho e a cor que ela preferia (havia
MUITA roupa, e dava pra isso), e eu conversava com as crianças e com os velhinhos perguntando como era a roupa que eles queriam, o modelo...
Pode parecer a maior besteira, nesse caos. Mas pensa - a pessoa perdeu
TUDO. Por que não dar uma alegriazinha a ela????
Às vezes só cuidar do corpo e da saúde não basta - tem que cuidar da alma. E eles queriam conversar sabe? Contar como tinha sido, o que tinha acontecido.
E todos saíam com um sorriso da nossa seção.
Outra coisa que nós saíamos do protocolo também - a pessoa chegava pedindo uma blusa. A gente entregava casaco junto. Isso evitava que o pobre depois tivesse que entrar na fila da assistente social de novo, pra pedir um casaco.
Um mãe chegou com a filha de 9 anos. A menina triste, nem levantava o rosto. Pediu uma "roupinha" pra filha trocar depois do banho. Perguntei o que ela queria. Ela me olhou espantada e disse que qualquer coisa servia. Virei pra menina e perguntei o que
ELA queria vestir. Ela ficou um pouco encabulada, por causa da mãe, mas respondeu num fiapo de voz: "
eu queria um vestido, tia".
Fui lá no alto da seção infantil, escarafunchei e depois de uns minutos voltei trazendo um vestido, um conjunto de blusa e calça e um casaquinho pra ela.
Nunca vi uma criança ficar tão feliz tão rápido!
Enquanto isso...
os meninos viviam outra aventura!
Junto com a Cruz Vermelha foram a localizações muito distantes levando mantimentos e colchonetes.
Tiveram que enfrentar lama e escombros. Viram de perto a destruição.
Foram a uma igreja que estava lotada de gente, e tinha um fogão cozinhando no meio dela. Em alguns lugares que eles foram as pessoas não comiam fazia tempo, ou não tinham mais nem água pra beber. Centenas de pessoas ainda desaparecidas. Os números de mortos que estão anunciando... você pode dobrar ele com certeza!
O B contou que num lugar, uma mulher estava desesperada pedindo fraldas pra um bebê.
Eles estavam descarregando o caminhão, quando detrás da pilha de colchonetes, apareceram pacotes e mais pacotes de fraldas.
Ele falou que nunca ficou tão feliz e subiram emocionados gritando
"Tem fralda! Tem fralda!"
E a mulher não parava de agradecer.
No bairro do Cruzeiro, eles tiveram que atravessar uma estreitissima
ponte de bambu em cima de um rio e lama,
com colchonetes nas costas pra levar pra população, e o meu amigo Daniel se emocionou e chorou quando ouviu uma menininha perguntar pra mãe por que ela não podia ir pra creche.
Quando percebiam que não éramos de lá, perguntavam espantados:
mas vocês vieram do Rio SÓ pra ajudar?
E depois ficavam nossos amigos, e nos agradeciam muito pela ajuda, e nos desejavam boa viagem de volta.
Nos encontramos todos no Pedrão no final da tarde com uma última missão, passada por um Coronel que ficou amigo deles - levar cestas básicas até o quartel dos bombeiros. Estavam chegando muitos resgatados de helicóptero, e eles estavam ficando sem mantimentos por lá. Nós presenciamos a chegada de resgatados.
Tinha começado a chover
MUITO e nós estávamos com medo da serra fechar e nós ficarmos presos por lá - Memée estava aqui no Rio na casa de uma amiguinha, e nós precisávamos voltar.
E foi isso, peeps. Tem muita coisa pra contar ainda, mas o post já tá giga.
Depois da ida ao quartel dos bombeiros, depois de mais de 12 horas direto nessa adrenalina, voltamos.
Um nó na garganta de deixar o povo lá, sabendo que eles estavam precisando de
CADA BRAÇO disponível pra ajudar.
Mas uma sensação boa de dever cumprido também.
Foi das experiências mais intensas da minha vida.
Eu queria ter fotografado e filmado tudo pra mostrar pra vocês.
Mas o B, sabiamente, me falou pra não fazer isso. Disse que tem
SEMPRE aquele espírito de porco que torce o nariz, e diz que você está se promovendo em cima do sofrimento dos outros.
Escaldada de ser mal interpretada como estou, dei razão a ele. Mas depois me arrependi - que se fodam os espíritos de porco. Eu deveria ter registrado tudo, pras pessoas terem
IDEIA do que realmente está acontecendo lá.
E de como as pessoas ainda precisam
MUITO de doações e ajuda também.
É uma pena.
Por isso tem tão poucas fotos - foram tiradas pelos amigos.
Mas, eu reafirmo:
AJUDEM!
Não precisa ir até lá pessoalmente (embora fosse maravilhoso, quem puder).
Mas doe!
Direto na Cruz Vermelha, pois é mais seguro.
As doações
ESTÃO CHEGANDO lá, e acabam rápido.
Eles precisam muito de água, leite em pó, velas, fraldas e produtos de higiene.
Comida pronta também, pois nem sempre eles tem como cozinhar.
E sangue! Os feridos precisam de sangue!
Ajude como puder, nem que seja um pouquinho.
A gente viu de perto que faz
TODA A DIFERENÇA.